terça-feira, 15 de setembro de 2009

O valdecismo: método prático e racional de espancamento educativo intrafamiliar

(Epígrafe. "Mais sofreu nosso tio Judas" Macunaíma)

Michel Foucault escreveu a História da Loucura e a história da violência nas prisões, em Vigiar e Punir. Esse filósofo francês deveria antes ter escrito a HISTÓRIA DA VIOLENCIA NAS FAMÍLIAS, cuja primeira parte inicia-se aqui. A violência nas prisões e a origem da loucura são, muitas vezes, etapas posteriores e consequentes à violência na infância e na família. Segundo o padre Guimarães, que veicula suas idéias pela rádio Joven Pan de São Paulo, “ a família é o berço de tudo”. Embora acrítico e apologético, diz bem o padre, mas deveria deixar mais claro a possibilidade implícita de a família ser, além do bem, o nascedouro, a geradora de tudo que não presta, sobretudo na fase em que a criança está se constituindo como sujeito e desenvolvendo suas formas psíquicas, físicas, sua história de vida humana, em fim, sua visão de mundo a partir de seu pequenomundo, seu microcosmo, numa fase, para ela, muito decisiva. A HISTÓRIA DA VIOLÊNCIA NAS FAMÍLIAS inicia-se aqui pelo Valdecismo, método claro e efetivo de educação espancativa e, ao mesmo tempo, um sistema complexo e enraizado sob o aspecto doutrinário, religioso e cultural. No entanto, o valdecismo, desenvolvido por D. Valdeci e Seu Joaquim, cujas características próprias serão denominadas aqui por joaquinistas, possuem aspectos de um método e de uma prática muito peculiares que se distinguem de outras formas de violências infantil e familiar. Não se contenta na possível inflexibilidade de um pai burguês escolher a profissão dos filhos, impor um time de futebol ou incutir na educação dos filhos aspectos xenófobos ou uma opinião inflexível, ditada de modo autoritário e com voz desmedida, que já são por si práticas condenáveis. O valdecismo/joaquinismo vão muito além, atingindo formas aparentemente ritualísticas de violência, devido a sua natureza e a sua sistematicidade. Até hoje, esta questão da violência na educação e na família, a pesar de sua emergência, tem sido mascarada na sociedade, em seus meios de comunicação e ausente nos currículos escolares, sendo desviada para outros assuntos. Algumas seitas, quando não fecham os olhos para esta questão, trata-a como demoníaca, ou seja, afasta o problema para um plano extraterrestre, anulando sua real discussão e solução. Já a sociedade, ou boa parte dela, arremete-a para questões de regionalismo, alcoolismo, pobreza, menoridade penal etc, sem enfrentar efetivamente o problema.

PRIMEIROS EXEMPLOS DO VALDECISMO

Os criadores do valdecionismo tiveram vários filhos, homens e mulheres, com pouca idade de diferença, o que era chamado de “escadinha”. Socialmente freqüentavam a igreja Assembléia de Deus na periferia de São Paulo, mesmo antes do primeiro filho nascer no início de 1970. Ela cuidava da casa, ele trabalhava fora, sem formação profissional e com poucos anos de escolaridade, e servia na igreja, onde chegou a presbítero. Todos os filhos frequentaram a escola desde cedo e ajudavam a manter a casa, mesmo antes dos dez anos, trabalhando nas adjacências em serviços informais, como vender ferrovelho, carregar material de construção para os vizinhos, vender pipocas na rua, e alguns deles, aos catorze anos, já possuíam registro em carteira como office boy no centro de São Paulo. Mas era no interior da pequena casa que se exercia o sistema de educação denominado acima, em horários irregulares, seja pela mão de d. Valdeci, de dia, ou de seu esposo, no turno da noite, antes ou depois da ida à igreja. Como uma batuta de maestro, havia ali um instrumento de "correção" que era uma grande borracha, cunhada pela expressão joaquinista de “borracha da amazônia”, que industrialmente servia para sustentar a almofada dos sofás e o peso das pessoas que faziam uso deles para se sentar. Essa borracha, que continha pequenos arames para resistir o peso das pessoas que usassem o sofá, ficava pendurada em um prego do lado de dentro da casa, ao lado da porta de entrada, num lugar alto, à mão de quem entra ou sai da casa. Ficava ali continuamente, aos olhos de todos. Se eventualmente desaparecesse dali, todos os meninos eram responsáveis e passivos de "correções" ampliadas. Por isso, a grande borracha continuava sempre ali aos olhos deles, em advertência prévia e contínua e com suas consequências psicológicas. Uma pesquisa poderia ser proposta a outros pesquisadores sobre que mão pesa mais nesse sistema de educação violenta, se a masculina ou a feminina; lembrando que muitas vezes elas se uniam sobre o corpo um mesmo educando. Mas a resposta deverá variar por questões sensoriais e pela capacidade de suportar de cada um que passe pela grande borracha, a chamada “borracha da amazônia”. Mas decisivo mesmo é o método utilizado no ato de usar a borracha. Um exemplo do valdecismo é o seguinte: A mãe faz com que o menino tire a camisa, deita-o no chão, pisa com um dos pés o pescoço dele e com a grande borracha, dá-lhe a correção nas costas. Não há explicação detalhadas, não há conversas explicativas ou orientações específicas, nem antes, nem depois. Mas há outros elementos específicos do valdecismo (o aspecto seguinte é específico de d. Valdeci), que são aplicados verbalmente. Durante o subir e descer da “borracha da amazônia”, a mãe solta sabedorias bíblicas e religiosas em um tom melódico, como pergunta e resposta, que devido à impossibilidade do menino que está com o pescoço preso sob seus pés de responder, ela mesma responde. Um versículo muito repetido era o seguinte “PARA QUEM OS VERGÕES DOS AÇOITES? PARA AS COSTAS DO TOLO”. Quando a resposta era exigida e assim mesmo o menino não respondia, o ritmo da melodia e simultaneamente a velocidade da borracha aumentavam. Diante de seu dever, o menino então soltava sua resposta em grunhidos ou gemidos. Quando alguns dos “espertinhos” procuravam se esquivar da correção gritando antes da hora “ não mãe”! “não mãe”!, ou respondia prontamente os versos da bíblia, que já conheciam como teólogos, uma resposta autêntica, vinda da alma era exigida prontamente com o aumento da velocidade da borracha.

O BANHO DE ÁGUA E SAL

Depois de passarem pela "correção" da grande borracha, havia o banho de água e sal. O banho de água e sal é uma outra especificidade do valdecismo, ou seja, não era um costume joaquinista. Este elemento próprio desse sistema, ao que parece nada tem haver com o “corredor de sal grosso” praticado em algumas igrejas neopentecostais brasileiras. Não é rejeitável, no entanto, alguma coincidência. Nessas igrejas tal ato, ou a passagem da pessoa pelo corredor serve para (segundo a crença) tirar dela o mal. Já no valdecismo não há nada muito claro, pois, os meninos tomavam o banho de água e sal sozinhos numa grande bacia de alumínio e, portanto, não havia músicas cujas letras esclarecessem este ponto. Na hora do banho de água e sal, geralmente, o único som era de choro. Agora, no campo da hipótese, pode ser que o referido banho fosse usado para tirar algum mal. Qual seria esse mal é um outro aspecto digno de pesquisa. Aqui lembrarei apenas os “vergões dos açoites” da sabedoria bíblica usada na hora da aplicação da borracha amazônica. O “maravilhoso” bem desse típico banho, assim, seria o rápido sumiço dos vergões dos açoites, que o sal provoca. Isto traria no mínimo duas vantagens: são elas, o sumiço dos vergões dos açoites e o pronto restabelecimento do “borrachado” para outra seção corretiva. Com o sumiço dos vergões, aliás, não haveria nada o que temer de pessoas e autoridades fora da casa. Se essa hipótese se verifica como possível, poderíamos chamar o valdecismo de maquiavélico no mesmo sentido que a igreja atribui ao que se refere a Maquiavel. O posterior banho de água e sal junto com o ato da educação pela borra, com o filho preso sob o pescoço, regado pela melódica sabedoria bíblica em forma de pergunta e resposta, lembra certos aspectos ritualísticos de regimes sem civilização que no entanto não será investigado aqui.


DANOS E RESPONSABILIDADES

Uma das pessoas alvo deste sistema é o hoje escritor e professor Elói Alves, formado pela Universidade de São Paulo, que aos doze anos de idade saiu de casa. Para sorte sua, foi morar com uma família amiga e acolhedora, com quem trabalhava. Uma palavra de ordem neste sistema era expressão “desocupa” usado por seu Joaquim, para ordenar a retirada definitiva de casa para alguém, no caso os filhos (ordem a qual sua mulher nunca se opunha). Um outo filho que ouviu esta palavra faleceu no nordeste brasileiro pouco tempo depois de sua partida. Este sistema de violência e suas formas ideológicas precisam não apenas ser esclarecido e denunciado socialmente, mas é preciso também acionar judicialmente a responsabilidade das instituições que permitem que atitudes violentas e criminosas façam parte de seu meio, de sua doutrina e revestem de autoridade institucional e hierarquicoeclesiástica pessoas como seu Joaquim, presbítero das Assembléias de Deus do Brás, que disfarçam suas ações com discursos religiosos igualmente autoritários e que auxiliam a encobrir socialmente suas práticas violentas e criminosas. Esta negligência e o silêncio das instituições diante dos atos criminosos daqueles que as servem colaboram com eles, os viabilizam e lhes são coniventes.
PRÓXIMOS TEMAS:

HEREDITARIEDADE DA VIOLÊNICA FAMILIAR: IMPLICAÇÕES CULTURAIS
a.OS QUE ROMPEM COM ELA
b.OS QUE A MANTÉM
A PALAVRA DE ORDEM “DESOCUPA” SEGUNDO O JOAQUINISMO
FALSAS CONCEPÇÕES DA VIOLÊNCIA FAMILIAR:
a.A VIOLÊNCIA ATRIBUÍDA A NORDESTINOS
b.A VIOLÊNCIA E ANALFABETISMO
c.VIOLÊNCIA E ALCOOL
A INTOLERÃNCIA NA IGREJA E NA FAMÍLIA
DOUTRINA RELIGIOSA E VIOLÊNCIA
A LEI DA EDUCAÇÃO (LDB) E A INTOLERÂNCIA COMO DESREPIEITO A ELA
REGIMES TOTALITÁRIOS E O TOTALITARISMO NA FAMÍLIA
A PSEUDO (FALSA) SACRALIDADE DA FAMÍLIA
O REDUCIONISMO ACADÊMICO, DA OPINIÃO PÚBLICA E POPULAR

2 comentários:

  1. Olá
    É incrível como são as coisas.
    Pssei por este sistema corretivo e claro sofri muito, mesmo vivendo meio que afastada desta família, mas hoje, lendo seu ESTUDO sobre o assunto cai na risada.
    Você conseguiu imprimir cores neste tratamento de choque e, embora não acredite que outros possam ter a mesma reação frente a sua narrativa, que de fato registra a realidade não só detsa família mais d emuitas outras que acabei por conhecer pelos anos afora nas ONGs onde tenho prestado serviço.
    Esquecestes apenas de citar que as sessões de espancamento - ou seria de correção? - eram em sua amioria aplicadas por mantras...

    ResponderExcluir